“COISA DE PRETO”


O jargão da hipocrisia continua espelhando a cara do racismo brasileiro

 

Semana passada o povo brasileiro foi novamente submetido à forma de violência mais marcante e recorrente em toda a sua história, o RACISMO. O apresentador do Jornal da Globo, Willian Waack, aparece em um vídeo incomodado com um motorista negro que buzinava na rua, chegando a afirmar que o incômodo só poderia ser “coisa de preto”.

Refletindo sobre a carga significativa dessa expressão, vinda de um homem branco, graduado na Alemanha, rico, professor universitário, escritor, formador de opinião para outros formadores de opinião, defensor do capitalismo e das políticas de Ajuste Fiscal, não poderia me furtar ao tema.

A conotação do binômio branco-preto, no Brasil, está diretamente ligada à concepção do que é, respectivamente, bom ou ruim. Isso se dissemina no seio da nossa coletividade, tanto no trato cotidiano quanto nas difusões áudio-televisivas, como bifurcações do que seja certo ou errado, divino ou diabólico, adequado ou inadequado, bonito ou feio, inteligente ou ininteligente e, até mesmo, humano ou macaco.

Entender essa polaridade é essencial para visualizar que, através dessa divisão aparentemente simples, a história da humanidade foi capaz de revelar absurdos indignos de honraria. Esse raciocínio separatista sustentou, por exemplo, a ideologia eurocentrista, que deu ao homem branco europeu o encorajamento para escravizar e dizimar povos tradicionais de suas colônias, em especial, na América Latina, na África e na Austrália. Índios, Africanos e Aborígenes não eram tratados como seres humanos, uma vez que eram desprovidos de intelecto e de alma, segundo, inclusive, cientistas e religiosos europeus.

A negativa da humanidade e a coisificação do ser humano é tática de domínio que data desde a Antiguidade, sendo capaz de motivar grandes contingentes, sobretudo exércitos, para a dizimação em massa de grupamentos humanos indesejados sem quaisquer remorsos, uma vez que, em tese, os dizimados não seriam necessariamente humanos, assim como os produtos de sua cultura, que estariam contaminados pelas impurezas de seus costumes, de suas crenças, de seus deuses.

Os nazistas, por exemplo, equiparavam negros a ratos. Os portugueses equiparavam negros a cavalos ou objetos.

O processo histórico de formação da sociedade brasileira, lamentavelmente, não escapou dessa tática de domínio, em nosso caso, aplicada principalmente por portugueses, franceses, holandeses e ingleses. Enquanto os índios enfrentavam a dizimação de seus povos e a usurpação de suas terras, os escravos da África eram submetidos ao trabalho desumano dos engenhos para fazer funcionar a economia exploratória e escravocrata da colônia “Ilha de Vera Cruz” (vulgo Brasil).

A herança que o Brasil deixou a esses povos é composta por sofrimento, escravidão, marginalização, animalização, satanização, sexismo, pobreza e racismo. Pormenorizando um pouco esse quadro tem-se que: (1) nosso país foi um dos últimos do mundo a sancionar a Lei Áurea; (2) 62% da nossa população carcerária são compostos por pessoas negras; (3) 66% dos moradores de favelas são negros; (4) 70% dos beneficiários do Programa Bolsa Família são negros; (4) apenas 5,5% dos universitários brasileiros são negros; (5) as religiões de matriz africana lideram os casos de denúncias contra a intolerância religiosa e destruição de templos; (6) a negritude é frequentemente associada à libido sexual e à animalidade; dentre outras situações.

“Coisa de preto”, na verdade, Mr. Waack, é sofrer! Assim como era no passado. “Coisa de preto” é, também, resistir aos desafios e à exploração que a história escrita pelos seus brancos algozes tem lhe imposto.

Por outro lado, “coisa de branco”, historicamente, costuma causar dor, exploração e morte ao próximo. O homem branco está diretamente associado: (1) à perpetuação da desumanização dos povos negros e tradicionais; (2) à projeção das frustrações de “sua raça” na “raça alheia”; (3) à exploração; (4) à herança do patrimônio construído pelos escravos; (5) à ganância; e (6) ao genocídio. Dão mostras disso, aliás sem pudores, os neonazistas da Alemanha, os supremacistas dos EUA (incluindo a polícia) e a elite racista do Brasil.

Foi “coisa de branco” a segregação de crianças estudantes brancas e negras em escolas e ônibus públicos; foi “coisa de branco” lotear o continente africano provocando guerras civis propositadas em tribos rivais coabitando o mesmo território; foi “coisa de branco” tratar as riquezas do Oriente Médio, especialmente o petróleo do Golfo Pérsico, como suas; foi “coisa de branco” orientar atrizes negras a voltar para a senzala; foi “coisa de branco” sugerir suicídio a Martin Luther King; foi “coisa de branco” jogar bananas para jogadores de futebol chamando-os de macacos.

Enfim, foi “coisa de branco” manter o negro e pobre Rafael Braga preso por “porte de pinho-sol”, configurando o único caso de preso político da história recente do Brasil.

Por fim, faço uma ressalva a você, leitor branco. A generalização em desfavor dos brancos, neste texto, como se todos fosses protagonistas ou apoiadores dos fatos horríveis citados acima foi propositada. A ideia era lhe causar a experiência de ser taxado pelo simples fato de ser branco. Agora, caro leitor, caso tenha se incomodado com essa experiência, talvez comece a compreender os efeitos dos fenômenos sociais da discriminação e do racismo, mas, certamente, jamais será capaz de mensurar os seus efeitos socioeconômicos, porque, aos olhos da mídia e de todo o aparato opressor existente no convívio cotidiano, na estrutura do Estado, na Polícia, no Judiciário, no modelo econômico, nas Penitenciárias, nas Universidades, dentre outros ambientes, você, simplesmente, deu sorte…

A raça humana é uma só, apesar das concepções vocacionadas e destrutivas de determinados Governos, religiões, seitas, grupos terroristas, segmentos econômicos e canais de mídia.

 

Diogo Souza

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