O vácuo político e o cidadão nulo


O perigoso liame entre o hiato representativo e a omissão política

Ancorada em profundas, recentes e concretas desilusões grande parte da juventude brasileira sente hoje nos ombros o peso da responsabilidade de reformular o futuro político, social e econômico do seu país. Nas ruas, nas urnas, nas redes sociais e nos espaços institucionais o Brasil ainda está vivendo os impactos políticos do frenesi instaurado desde as Jornadas de Junho, em 2013, e do desnude das relações promíscuas entre o setor privado e os interesses públicos nacionais.
Nesse cenário há parcelas importantes da massa crítica brasileira que tendem a caminhos diversos, por vezes antagônicos. A deslegitimação do processo eleitoral, por exemplo, tem sido álibi para fundamentar a democracia participativa em nível máximo, mas também para justificar a mera e simples omissão com base na embreada, furiosa e aparentemente revolucionária mentira, segundo a qual uma eleição com mais da metade de votos nulos é igualmente nula.
Apesar de, felizmente, a superação desse atordoamento político começar a ganhar contornos com as convergências de variados setores sociais organizados, sobretudo com as iniciativas da Frente Povo Sem Medo, da Plataforma Vamos! e das atuações parlamentares e mandatárias contra a política de Ajuste Fiscal, é necessário compreender algumas causas da atual Crise de Representatividade Política brasileira.
As recentes movimentações em torno de velhas tendências políticas que simbolizam a personificação do poder evidenciam o caráter inédito dessa Crise desde a redemocratização do país, passando pela quebra irresponsável de seu último ciclo democrático em 2016, com amplo apoio da mídia televisiva comercial.
A antropológica vocação humana voltada muito mais à obediência do que ao contraponto está sendo desafiada e, neste momento, a história viva convoca o povo brasileiro a se manifestar, obrigando-o a decidir por si seu próprio rumo, pois seus representantes, em ampla maioria, o traíram deliberadamente e continuam dando mostras diárias de seus desdéns quanto a isso.
Se de um lado o programa privatizante do PSDB (1995-2002), apoiado, dentre outros, pelo PFL (hoje DEM) e pelo PMDB, conduziu o país à dilapidação do patrimônio nacional, à miséria, à extraordinária concentração do poder político-econômico e à superexploração do trabalhador e do oprimido; por outro, o programa conciliatório de classes do PT (2003-2016), apoiado pelo mesmo PMDB de outrora e por outros partidos elitistas e, ainda, por coronéis tarimbados da política brasileira, conduziu o país ao abismo da apatia popular, conservando as distorções oligopolistas das estruturas políticas e econômicas garantindo, em paralelo, a domesticação dos movimentos de massa por meio da melhora circunstancial dos índices socioeconômicos.
Vinte e dois anos depois, com as evidências dos negativos resultados políticos de ambos os programas, a juventude atual, que teve nesses dois parâmetros suas únicas experiências de condução governamental, sente-se órfã e reage, porque presencia um momento histórico em que as instituições públicas não se voltam aos seus papeis, materializando, assim, um vácuo político e uma Crise de Representatividade a partir da Crise Institucional.
Não se trata mais de disputa de teses, e sim de crise concreta de representatividade política.
E essa concretude em volta do descrédito popular nas instituições tem pressupostos bem delineados. A manutenção do antigo cacicado político no círculo decisório brasileiro, bem como a manutenção dos oligopólios e das fórmulas lícitas e ilícitas por onde se esvai o erário fruto do trabalho e da exploração do povo brasileiro, continua sendo garantida por mecanismos que despejam no trabalhador o ônus pelo previsível e inevitável mau funcionamento desse sistema, amplamente defendido pelos meios de comunicação de massa de caráter comercial, não raro, com versões falaciosas e tecnocratas, perante uma população com número de analfabetos próximo ao número de formados com nível superior.
A Crise da Credibilidade Institucional só aumenta quando o aparato formador da consciência coletiva mira nos agentes da corrupção, mas ignora suas causas, tal como o financiamento privado de campanhas eleitorais e caixa 2; mira nos beneficiários das subvenções do BNDES por intermédio da influência política, mas não aborda a necessidade da auditoria cidadã da Dívida Pública Interna, para que esses financiamentos sejam de conhecimento público; mira na iniciativa generalizada de criminalizar a política, mas, propositadamente, se furta em enaltecer ações parlamentares independentes e importantes contra a corrupção; mira no alarmante número de desempregados para enfraquecer um governante que não lhe convém, mas se omite em tratar da herança nacional escravocrata, genocida e patriarcal que marginalizou negros, quilombolas, índios, povos tradicionais e mulheres, com repercussões óbvias nos mapas do desemprego e da fome no Brasil; mira na extraordinária carga tributária praticada no país, mas, por se tratar de interesse próprio, evita abordar a necessidade de se tributar o rentismo e as grandes fortunas.
A cinematografia da hipocrisia economicista e do escárnio sobre o papel da política tende a potencializar a ojeriza popular quanto aos mecanismos políticos de redefinição do atual processo contra os interesses do povo brasileiro. Nesse bojo, fatores como a Operação Lava-Jato, a Crise Econômica, o recorde de desempregos, os desastres ambientais sem punição, a partidarização do Poder Judiciário e o messianismo político amplificam sobremaneira essa tendência.
As distorções do sistema político brasileiro e suas abordagens criam ambiente tão instável que a personificação do poder institucional atingiu patamares lastimáveis. “Gilmares” e “Moros” partidarizam a justiça com parcialidade flagrante; “Dallangnois” protagonizam patifarias processuais em telas de slides, comprometendo a finalidade e as garantias constitucionais basilares do processo judicial; “Renans” tripudiam da impunidade; “Lulares” esvaziam o sentido da política programática e apelam para a comoção popular; “Temeres” cinicamente falam em nome do povo mesmo com inacreditável reprovação de 97%; “Geddeis” enriquecem ilicitamente com dinheiro público sem qualquer pudor; “Aécios” dão mostras diárias de que o poder público, na verdade, tem donos predefinidos na história de nosso país; “Cunhas” praticam, à luz do dia, toda sorte de venalidades em nome das prerrogativas de suas funções públicas.
Todos esses fatores subsidiam a sensação de vácuo político-representativo, do qual decorrem a destruição de parte significativa da esperança popular e a abertura de fissuras no processo democrático com o surgimento de salvadores da pátria munidos de soluções simplistas e, não raro, de elevado teor de violência e ódio. E nisso mora um perigo iminente, pois a desilusão política do povo dificulta ainda mais as chances de mobilização e de renovação orgânica com base nos pressupostos democráticos e nas liberdades civis.
Entretanto, por outro lado, esse quadro estimula parcela importante dos inconformados a tomarem uma ação política capaz de se expandir para além dos confortos de seus lares. Aqui reside uma aposta crucial.
O momento atual de nossa política, envolvida fartamente em escândalos de corrupção e com trágicos índices sociais, econômicos, civis e culturais, desperta o brasileiro para a percepção de duas distorções importantes:
(1) As representações políticas atuais, em sua maioria, não estão a serviço da resolução dos problemas coletivos; e
(2) A apatia popular generalizada não se constitui em alternativa viável.
É essa percepção que conduz a juventude progressista à obrigação de reagir, pois é seu futuro que está em jogo.
Lutar pelos direitos sociais, pela igualdade socioeconômica, pelo meio ambiente e pelas liberdades civis, combatendo a reinstalação do conservadorismo político-cultural e a centelha do fascismo moralista e policialesco figura, hoje, nos planos da sobrevivência e da transformação concreta, e não mais no campo dos debates de mera opinião.
E você, vai fazer o que?

 

Diogo Souza

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