Titãs – Todos Ao Mesmo Tempo Agora


Quando eu tinha 12 anos, meu tio Rui me levou ao meu primeiro show de uma banda nacional: Titãs em Aracaju. Era a turnê do Acústico MTV, e eu tive que tirar minha carteira de identidade para provar que eu já tinha idade para ouvir músicas como Bichos Escrotos. Eram outros tempos. Eis que nesta última sexta-feira (26/05), minha filha mais velha Giovana vai conosco ao seu primeiro grande show: Titãs em Aracaju, com a turnê Encontro. Depois de muitos anos separados, todos os integrantes originais se reúnem, com exceção de Marcelo Fromer, falecido em 2001. Nesta turnê, ele é honrosamente substituído pelo produtor Liminha e representado por sua filha, a cantora Alice Fromer.

Que momento antológico e inesquecível. Tudo ao redor da mitologia dos Titãs esteve aliada ao tempo durante esses anos, desde o nome da banda, à estética de palco dos integrantes e as próprias canções. Tudo envelheceu bem. Numa entrada triunfal, eles pousaram lado a lado em frente a um fortíssimo telão branco que nos permitia ver apenas suas silhuetas. E aí está a primeira forte mensagem: sabemos quem é quem apenas pela linha do corpo de cada um, e eles estão de volta, juntos no mesmo palco.

Essa reunião nos permitiu relembrar a maior riqueza dos Titãs: os contrastes entre seus integrantes, cada um deles um personagem importantíssimo no grupo, cada um com uma voz única no rock brasileiro. Vendo suas sombras enfileiradas contra aquele clarão, pensei como o nome Titãs talvez os represente melhor hoje do que nos primeiros anos de “Titãs do Ye Ye Ye”. Naquela espécie de olimpo, eles não eram heróis valorosos ou deuses cheios de glória, mas titãs. São monstros estranhos, imperfeitos, mas poderosos e magníficos. Eles descem para o degrau inferior do palco para celebrar conosco, meros humanos, mas as mensagens que trazem não são sempre fáceis – nos farão pular e gritar, mas nos farão pensar na nossa condição humana, muitas vezes limitadora e vitimizada por uma vida cheia de duras complexidades.

Os Titãs são uma banda estranha, no melhor sentido possível. Muito diferente das outras bandas de rock, tem cinco vocalistas, alguns tocam mais de um instrumento, todos os integrantes são compositores, os arranjos incorporam elementos muito diversos e as canções vão de baladas tranquilas como Toda Cor e Não Vou Me Adaptar, até porradas como Polícia e Lugar Nenhum.

Estar nesse show me fez ouvir, de fato, os grandes clássicos como não fazia há muito tempo. Nos meus ouvidos e olhos de hoje, ficou uma certeza: os Titãs são um grupo extraordinário em muitas camadas diferentes. O fato de serem uma banda de São Paulo, mas não por isso automaticamente um produto nacional, mas sim profundamente paulistana, os confere um espírito urbano, cosmopolita e caótico. Representam como poucos a terra da garoa, em todas as suas faces: tanto a loucura da metrópole como sua riquíssima história cultural.

O sotaque de Paulo Miklos e Sérgio Brito cantando “diveRsão” e “só quero saber do que pode dar ceRto”, com um R indefectivelmente italiano; a estreita relação de Arnaldo Antunes com os poetas concretistas de São Paulo e sua paixão pelo grafismo e outras formas físicas da palavra; as inúmeras narrativas que emanam das grandes cidades sobre a alienação do homem comum pelo capitalismo e sua imbecilização pela mídia, como em AAUU, Tô Cansado e Televisão, enfim, está tudo lá, tudo concatenado com extrema destreza, na forma de pura violência e poesia.

Sim, poesia! Acho que hoje vejo muito mais profundidade textual em Miséria ou Hereditário do que em outras bandas brasileiras que sempre gozaram de prestígio por um suposto alto nível de retórica. Não citarei nomes, venho em paz. Mas que momento poderoso ouvir Nando Reis destruindo no baixo e cantando Nome aos Bois (com direito à inclusão de Bolsonaro na lista dos autoritários violentos), Arnaldo cantando O Pulso e fazendo suas danças maravilhosas, e ouvir também Flores, cantada pelo imbatível Branco Melo, que apesar da voz debilitada pela recente cirurgia de extração de um tumor na laringe, cantou bravamente todas as suas músicas. Emocionante!

Existe nos Titãs um cuidado profundo com a palavra e com a métrica, uma simplicidade genial que transmite ideias imensas, mas não perde jamais a atitude de uma banda de rock. A genialidade das canções corre até o risco de se perder em meio à intensidade dos arranjos, e ficam ali recobertas por uma aparente despretensão. Não assumem jamais um tom professoral ou muito menos moralista, como às vezes acontece com compositores de menor sensibilidade do rock nacional. Os Titãs não estão tentando te catequizar ou doutrinar sua visão de mundo, mas te expor a reflexões, às vezes sociais e muito pragmáticas, às vezes de um maior nível de subjetividade.

Acho que muitos de nós que crescemos ouvindo Titãs e tínhamos talvez nos desconectado um pouco deles diante dos discretos lançamentos dos últimos anos, nos vimos agora confrontados por canções que nos pegaram em outro momento da vida. A cada vez que Nando Reis repetia o título e única frase de Jesus Não Tem Dentes no País dos Banguelas, eu entendia um pouco mais o que ele dizia: toda fé é um reflexo do seu povo, queremos acreditar naquilo que enxergamos em nós mesmos. Mas, nos lembra Brito, somos apenas primatas que aprenderam a falar um dia desse na história do mundo. Somos daqui, mas também de lugar nenhum e estamos perdidos, tentando encontrar sentido nessa selva de pedra.

E a vida é tudo isso: às vezes o acaso nos preteje, a felicidade nos encontra e tudo faz sentido. E às vezes somos Branco Melo, dando tudo de nós, bradando num palco imenso, eu não sei fazer música, mas eu faço, eu não sei cantar as músicas que faço, mas eu canto.

Cantemos e sigamos!

Ninguém sabe nada.

Por Ivan Reis

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