Matéria de Poesia, O Amor e o Pêssego com Manoel de Barros
A poesia de Manoel de Barros (1916) é um mundo novo e um mundo à parte. Partindo de palavras que todos conhecemos, organiza um discurso que estilhaça a lógica do seu significado corrente tão só pela relação criada entre elas.
Não é um inventor de palavras mas um observador das coisas do mundo que identifica o subtil absurdo em que mergulhamos com a certeza de viver uma normalidade.
Conhecedor do peso e possibilidades de cada palavra, na organização do verso introduz-nos num universo que surpreende e encanta:
Quem não tem ferramenta de pensar, inventa.
Ao percorrer esta poesia continuamos no num meio conhecido, mas saímos da viagem a olhar à volta, para o que fazemos e pensamos, de outra maneira.
Comecemos por conhecer o que para o poeta é susceptível de ser assunto poético:
Matéria de Poesia
Todas as coisas cujos valores podem ser
disputados no cuspe à distância
servem para poesia
O homem que possui um pente
e uma árvore
serve para poesia
Terreno de 10×20, sujo de mato — os que
nele gorjeiam: detritos semoventes, latas
servem para poesia
Um chevrolé gosmento
Coleção de besouros abstêmios
O bule de Braque sem boca
são bons para poesia
As coisas que não levam a nada
têm grande importância
Cada coisa ordinária é um elemento de estima
Cada coisa sem préstimo
tem seu lugar
na poesia ou na geral
O que se encontra em ninho de joão-ferreira:
caco de vidro, garampos,
retratos de formatura,
servem demais para poesia
As coisas que não pretendem, como
por exemplo: pedras que cheiram
água, homens
que atravessam períodos de árvore,
se prestam para poesia
Tudo aquilo que nos leva a coisa nenhuma
e que você não pode vender no mercado
como, por exemplo, o coração verde
dos pássaros,
serve para poesia
As coisas que os líquenes comem
— sapatos, adjetivos —
têm muita importância para os pulmões
da poesia
Tudo aquilo que a nossa
civilização rejeita, pisa e mija em cima,
serve para poesia
Os loucos de água e estandarte
servem demais
O traste é ótimo
O pobre-diabo é colosso
Tudo que explique
o alicate cremoso
e o lodo das estrelas
serve demais da conta
Pessoas desimportantes
dão para poesia
qualquer pessoa ou escada
Tudo que explique
a lagartixa de esteira
e a laminação de sabiás
é muito importante para a poesia
O que é bom para o lixo é bom para poesia
Importante sobremaneira é a palavra repositório;
a palavra repositório eu conheço bem:
tem muitas repercussões
como um algibe entupido de silêncio
sabe a destroços
As coisas jogadas fora
têm grande importância
— como um homem jogado fora
Aliás, é também objeto de poesia
saber qual o período médio
que um homem jogado fora
pode permanecer na terra sem nascerem
em sua boca as raízes da escória
As coisa sem importância são bens de poesia
pois é assim que um chevrolé gosmento chega
ao poema, e as andorinhas de junho
Pela vastidão enunciada imagina-se qual a dificuldade na escolha dos poemas para o espaço reduzido do blog, daí que tenha optado por duas reflexões em torno do amor, que a si, leitor(a), convido a meditar.
O Amor
Fazer pessoas no frasco não é fácil.
Mas se eu estudar ciências eu faço.
Sendo que não é melhor do que fazer
pessoas na cama
Nem na rede
Nem mesmo no jirau como os índios fazem.
(No jirau é coisa primitiva, eu sei,
mas é bastante proveitosa)
Para fazer pessoas ninguém ainda não
inventou nada melhor que o amor.
Deus ajeitou isso para nós de presente.
De forma que não é aconselhável trocar
o amor por vidro.
Quem não tem ferramenta de pensar, inventa.
Depois de sabermos que não é aconselhável trocar o amor por vidro, o poeta explica-nos porque e como se abre o pêssego de Deus.
PÊSSEGO
Proust
Só de ouvir a voz de Albertine entrava em
orgasmo. Se diz que:
O olhar de voyeur tem condições de phalo
(possui o que vê).
Mas é pelo tato
Que a fonte do amor se abre.
Apalpar desabrocha o talo.
O tato é mais que o ver
É mais que o ouvir
É mais que o cheirar.
É pelo beijo que o amor se edifica.
É no calor da boca
Que o alarme da carne grita.
E se abre docemente
Como um pêssego de Deus.
Fonte: Blog Vício da Poesia