ENTRE ELAS É UM SUCESSO! E É NECESSÁRIO…


Tudo começa numa sala de estar: um sofá, um tapete, algumas taças e uma garrafa de vinho. Almofadas enfeitam o móvel e um painel centralizado na parede coberto com um tecido negro já alimenta e atiça a nossa curiosa imaginação…O que temos ali? Em breve o pano cairá e revelará dois corpos femininos que se tocam, trocam carinhos, se devoram e fazem jus ao título da peça: literalmente, Entre Elas.

Tigresa é uma canção composta por Caetano Veloso e lançada em 1977 e abre o espetáculo inesperadamente com a entrada segura (quase um desfile) e cheia de presença cênica e repleta de humanidades de seis atrizes e um ator que toparam o desafio de se desnudarem, de abandonar “as suas vergonhas” e preconceitos e de quebra nos dão um tapa na cara em plena noite de sexta-feira, após uma longa semana de trabalho e cansaços. Mas o tapa na cara foi bom e aqueles milhares de beijos na boca e mãos bobas foram um deslumbre! Lascívia, beijos e teatro muito me interessam.

Ali, já dava para saber que assistiríamos a uma história sobre gente e vidas, nua e crua,  sobre sensibilidade  e intensidades, sobre o belo e o trágico, sobre amor e sexo, rancor e perdão, e sobretudo, uma história que nos remete a corpos e almas, femininos e masculinos, transsexualizados , romantizados, sofridos e marcados pelos acontecimentos, escolhas e surpresas do mundo. Tigresa foi um acerto! Não poderia faltar. E já menciono aqui um dos deleites da peça: a música! Trilha sonora oportuna, necessária, bonita, representativa e bem encaixada à narrativa.

A priori, pensei comigo: essa será uma história de mulheres que se reencontram numa sala de estar numa noite qualquer e beberão vinho, contarão suas vitórias e derrotas, sucessos e frustrações, amores e dissabores…Elas vão sorrir bastante e depois chorarão suas dores e emoções mais profundas lamentando o passado, os erros , as escolhas e o que deixaram de fazer pois tiveram medo de tentar.  Imaginei que o vinho estava ali para facilitar isso e a atmosfera criada e a qual fomos transportados já era sugestiva para esse possível desenho que já seria bom, se assim o fosse. Mas é aí que se revela toda a questão e a motivação que me levam a escrever sobre o Entre Elas: o texto! O negócio foi o texto!  A história, ou melhor, o entrelaçamento de várias histórias, que de tão bem amarradas, cruzadas e enredadas, pareciam uma só. E era! Poderia ser a história comovente de cada um de nós.

Maturidade, poeticidade, coesão e coerência, quebras de expectativas, diversidade linguística, diálogos na medida certa, referências e intertextualidades são algumas das virtudes e destaques do texto de Thalita Síntique. Mas, antes de tudo, é um texto de denúncia, um grito de  alerta, de sororidade, de empatia, de reflexão e  que presta um grande serviço à sociedade quando reverbera de forma tão contundente e verdadeira(sem panos, máscaras ou tapumes) a realidade violenta e cruel dos homossexuais e transsexuais no Brasil. É um texto que permitiu ao espetáculo  levantar e defender as bandeiras de quem ousa ser diferente até o fim da sessão sem apelar a lugar comum ou clichês. Não esperem um texto que faz militância. Ele é um convite e uma cutucada para você se remexer diversas vezes na cadeira, desviar o olhar quase sempre, arranhar a garganta e fingir que não é com você. Porém, é com você também e é impossível não se importar.

O fato das amigas de Dudu contarem a história pelo ponto de vista e vozes femininas é o que faz a diferença. Entre Elas, só entre elas, a narrativa fica mais afetiva, nostálgica, pessoal, tem pertencimento e muita saudade. Entre Elas é também uma história sobre a amizade. Ao perder o amigo comum, essas mulheres veem suas vidas serem modificadas e alteradas. Individualmente, elas se entregam a uma forma de sentir e sofrer a morte do artista de maneira única e particular. E o que acontece quando decidem se reencontrar e inevitavelmente esse assunto vem à tona num sofá, entre taças de vinho, lágrimas, beijos e lembranças? Acontece o que o texto se propôs desde o início a contar: as vivências, as experiências , as aventuras , as decisões e escolhas de cada uma se misturam e se realinham( ou não), alimentando a narrativa e caminham e nos levam para a morte  de Dudu, que durante quase todo o espetáculo é sugerida, tocada e sutilmente lembrada. E nesse momento, o papel social e denunciativo do texto ganha mais forma e robustez, cria volume e cumpre o seu papel ,destacando o problema da homofobia, do preconceito e discriminação sexual e de gênero que  ganham voz e vez nas falas das amigas e nas imagens criadas e representadas brilhantemente pelo ator Luiz Souza que interpreta Dudu.

Essas seis atrizes, antes de tudo mulheres, dão a corda necessária para o gigantismo e beleza que emergem da atuação de Luiz. O texto ajudou, a direção soube tocar no ponto, mas a generosidade das meninas/atrizes para com Dudu/Luiz, facilitou bastante e ficou bonito de se ver.

Não tenhamos dúvidas: Entre Elas é uma história sobre o feminino e suas diversas formas de assim o ser. É sobre mulheres e homens e também sobre cada um de nós…É sobre corpos e o direito de assumir esses corpos da maneira que se desejar. Entre Elas é aquele tipo de texto que já nasce predestinado a incomodar e a colocar o dedo nas feridas da sociedade. É o tipo de obra que passeia pela hipocrisia, pela retidão doentia e equivocada, pelos valores distorcidos que violentam e matam, pela religião que aponta, persegue e tolhe vidas, e mais que tudo: revela uma sociedade insensível, sem empatia e solidariedade, que avança (ou retrocede)  se preocupando com os parceiros e amores  dos outros, julgando e punindo de forma cruel e maldosa os semelhantes, sem se importar com a vida humana , ou com as famílias e amigos que perdem seus entes através da prática da homofobia. E enquanto toca em tudo isso com delicadeza, mas sem romantismo ou fantasia, o espetáculo nos presenteia com cenas, falas e momentos de pura poesia, arte e até de um leve humor.

E sobre o espetáculo? Sobre a direção? Sobre as seis atrizes e o ator? Esses foram formidáveis e afirmo que dispensam comentários, até porque não me cabe ser um crítico teatral e não anseio fazer isso aqui. Eu fico com o silêncio, pois, às vezes, ficar mudo é sinônimo de contemplação, admiração e reverência. E assim eu fiz naquela sexta-feira, à noite, cansado de uma semana de trabalhos. Eu saí mudo e calado. A gente se cala quando a entrega é bem feita, completa e arrebatadora! É que o silêncio fala mais que mil palavras.

Entre Elas já é um sucesso! E é um espetáculo necessário…

 

Antônio Neto

Professor e Coordenador pedagógico

Poeta e intérprete

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  1. SILVIA CARLA DE SOUZA OLIVEIRA disse:

    Perfeito

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